sexta-feira, 29 de junho de 2012

Cartão de embarque

Acordo e estou num avião. A hospedeira pergunta-me se quero comer. Tem a boca vermelha e parece uma Kate Winslet desfocada, o que me faz pensar na minha mulher ou "ex-mulher". Título mais estranho para uma mulher tão séria e tão feliz. No sonho vou a caminho de Bruxelas para perguntar à presidente da União porque é que a Europa está a cair. "Deseja mais alguma coisa?" À quarta tentativa, consigo abrir a embalagem transparente, trinco o bolo. Um sabor a pomares de plástico sob longos céus parados. Acordo e estou num avião. A hospedeira pergunta-me se quero comer. Tem os dentes manchados de batom e isso traz-me à memória a minha namorada ou "amante". Se o termo não é muito antiquado, que a rapariga é assustadoramente jovem. Um grande plano fulminante, um flash na noite do quarto de hotel. A verdade é que, depois do divórcio, a nudez desta mulher quinze anos mais nova que eu perdeu todo o perigo. "Obrigado, muito obrigado." No sonho Lisboa é uma cidade arrasada por bombardeamentos aéreos e eu estou parado no que costumava ser uma rua ou uma praça a tentar perceber para que lado é o rio. Dentro do plástico transparente, o bolo castanho é um tumor. Quantas vidas estarão implicadas no facto disto estar aqui, à minha frente, em cima de um tabuleiro da cor do céu? Acordo e estou num avião. A hospedeira pergunta-me se quero comer. Quero comê-la, agarrá-la pelo rabo, morder-lhe o vermelho da boca, chupar-lhe a língua estrangeira até ela não ser mais do que um corpo, mas limito-me a fazer que sim com a cabeça. Pela janela, vejo os campos europeus, as casas, estradas, os rios, tudo diminuindo magnificamente. O raio de sol atravessa o avião como uma viga de ouro. Fecho os olhos. Não tenho ninguém a quem telefonar, ninguém no mundo inteiro, mas a Europa está salva e é uma União a caminho da felicidade. "Será que posso pedir um café?"



(conto escrito para o jornal A Cabra)                     

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Um poema de Luís Vaz de Camões



Na desesperação já repousava
o peito longamente magoado,
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;

quando ũa sombra vã me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tão fermosa imagem, que o treslado
n'alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente
o coração àquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou contente;
que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória já do que imagino.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Sobre uma fotografia de Irina Rozovsky

Aqui é saudável, uma pessoa sente-se viva aqui. Não sei, mas acho que preciso de ar livre para organizar os pensamentos, é. Aqui sinto-me mais nova, como se ainda namorasse uma qualquer ideia futura de mim. Que ridículo. Mas é verdade, aqui sou uma ideia aberta ainda. Mexo os braços, sofro a brisa no vestido leve, de rapariguinha, ponho isto na boca, travo, sopro. Entre paredes, a minha cabeça é grande demais e toda fechada sobre si mesma. Aqui não. Quer dizer, aqui é que sim. Dentro deste ar puro — tanto oxigénio jovem que se perde inutilmente, gloriosamente —, dentro deste espaço livre as palavras ganham um sentido, uma direção. Aponto-as para ali, já está. As palavras aqui tornam-se opacas, fantasmas de ver, de tocar, quase. Sei exatamente o que quero. Deixem-me rir, peço desculpa. Tenho de rir, adoro vir para aqui quando há sol. É saudável, é fresco. Ideias frescas e boas! Se alguém se põe entre mim e o que eu quero, é melhor que tenha as rezas todas em dia, ah pois. Não é, meu amor?

terça-feira, 26 de junho de 2012

Jornal Local: o silêncio

No edifício das Finanças, na Rua dos Correeiros, abre-se a porta do elevador. Uma luz branca rasga o cinzentismo habitual do lugar. Jornal Local sofre por não ter uma máquina fotográfica. Do elevador, sai uma senhora de sessenta e tal anos, cabelo ralo, ar frágil, que usa uma canadiana para andar. Traz vestida uma camisola com grandes letras junto à cintura formando a palavra ANGEL.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Os Quais fora da caixa

Hoje, às 18.30h, na Fnac Chiado.
Sexta-feira, às 22h, na Fnac Vasco da Gama.
Sábado, às 18, na Fnac Colombo.

POP É O CONTRÁRIO DE POP

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Aulas de xadrez no balneário


Grande vitória, alta alegria. Estamos nas meias e agora é apontar lá para cima, para o canecão europeu. Mas, caros amigos, finais de jogo como o de ontem é que não. Aquela pequenez de acabarmos encostados às linhas a fazer tempo não é para nós, não é para quem gosta de bola, não e não. Aquilo, somado a um treinador que mete dois jogadores defensivos e ainda se põe, aflito, a apontar para o relógio, não é só triste e desonroso. É um falhanço estratégico, um erro crasso. Um campeonato destes decide-se jogo a jogo, pois, mas também nunca perdendo o horizonte. Como no xadrez, não se trata de ganhar só a jogada que temos à frente, há que pensar na disposição das peças para a jogada seguinte. E deixar que uma grande vitória feche a cortina assim, em clima de antijogo e ai-jesus, não é propriamente o melhor lançamento para o embate que aí vem... Pensemos antes no Nani do jogo com a Holanda, no Varela do jogo com a Dinamarca, no Cristiano de ontem. É apontar lá para cima, para o ponto mais alto de nós. Conseguimos mais uma bela vitória, sim. Agora só nos falta saber ganhar.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Reportagem 5



"Sabes, não há nada tão mau como ter remorsos em questões de arte." (Ingmar Bergman)

terça-feira, 19 de junho de 2012

Exmo. Presidente da Comissão Europeia

É bom a Europa ter voz e não ter medo das palavras. Mas não falta uma visão de futuro — uma política clara, no mínimo — que dê suporte a pancadas destas? Se o subtexto europeu de expressões como "how can I put it... unorthodox practices" é só a guerrinha de puxa-a-manta-descobre-os-pés entre austeridade e crescimento, a leitura de um episódio assim não será que o Presidente da Comissão Europeia está a fazer antijogo? Que o porta-voz europeu, não sabendo o que fazer da bola, se limita a chutar para a frente numa tentativa desesperada de ganhar tempo?

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Tecnocracia

"Aqui está o paradoxo por trás da 'liberdade de voto' nas sociedades democráticas: somos livres de escolher na condição de fazermos a escolha certa."

"A Grécia não é uma exceção. É um dos principais terrenos de experimentação para um novo modelo socioeconómico de aplicação potencialmente ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros e outros especialistas são autorizados a arrasar a democracia. Ao salvarmos a Grécia dos seus supostos salvadores, salvamos também a Europa."




(Slavoj Žižek, na London Review of Books, 25 de maio)

sexta-feira, 15 de junho de 2012

i-Errata

A propósito do disco dos Quais, sai uma entrevista minha hoje, no Jornal i. Está tudo muito bem, mas há duas gralhas chatas. Uma é logo no começo, quando falo de ter jogado à bola com o Chico Buarque. Como é óbvio, não disse que a culpa da derrota era do treinador Sérgio Godinho. Tenho muitos defeitos, mas não tenho esse de passar culpas para cima. É verdade que, apesar desse grande mister, perdemos por um golito contra o Brasil de Buarque de Hollanda. Mas, se continuarmos a trabalhar, domingo a domingo, ainda poderemos dar muitas alegrias à música portuguesa. 
Outro mal-entendido eletrónico tem a ver com filhos e canções. Não me comparei a nenhum filho de 32 anos. O que disse foi que as canções que não damos a conhecer publicamente, a certa altura, parecem filhos de 35 anos que ainda vivem em casa dos pais — filhos a quem apetece dizer, sai para o mundo, deixa esta casa para outras ideias, vai! Sambassaudadessim: Pop é o contrário de Pop.

terça-feira, 12 de junho de 2012

A noite do caçador

Que se ponham a pau os "austeros" encenadores da crise europeia enquanto conto moral. É que, por vezes, a história ganha vida própria e depois é o diabo a sete. Como é que é o velho ditado, "pela moral morre o moralista"?


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Jornal Local: a cadeira

Ali a chegar à esquina do Teatro, pela ruazinha que estranhamente se chama “Largo da Trindade”, uma mulher leva uma cadeira de escritório. As rodas mínimas fazendo um barulho nervoso na calçada. De repente a cadeira afasta-se da mulher, rola em direção a uma boca de incêndio. Por um momento, parece que vai levantar uma das pernas e mijar. O natural seria isso, seria isso o certo para aquela cena, naquele cenário. Mas, antes que tal aconteça, a dona puxa-a, ou empurra-a, e lá vai ela. Jornal Local guarda a imagem dentro da chuva molha-parvos. Está sempre cansada a cadeira, porque só sabe descansar.